A semana do despejo
27/10/12 03:20Já não é novidade aqui pela Europa pessoas tirando suas próprias vidas por conta da crise. Só neste ano, aconteceu na Itália, na Grécia, e nesta semana aqui na Espanha. Um comerciante de Granada, no sul, foi encontrado morto em seu apartamento na manhã em que seria despejado por ordem da Justiça. Segundo a polícia, ele se enforcou.
A história, além de comover o país, aconteceu na mesma semana em que a legislação espanhola sobre hipotecas voltou a ser questionada. O jornal “El País” publicou um relatório feito por juízes federais que critica a atual lei e propõe uma reforma. Junto com o documento, que o Poder Judicial alegou não ser oficial, o “El País” fez esta série de reportagens com histórias de pessoas que tiveram de deixar suas casas por ordens de despejo.
Há uns meses contei aqui que a legislação espanhola é rigorosa com quem não consegue pagar a hipoteca. Além de perder a casa, o comprador tem de seguir pagando a dívida até quita-la.
De qualquer maneira, o assunto voltou a ser discutido durante sessão parlamentar esta semana. O partido socialista, de oposição, apresentou uma proposta de reforma da lei, alegando que ela é muito branda com os bancos que cobram a hipoteca e financiam imóveis com crédito fácil mas muito rigorosa com os compradores que, com a crise, não conseguem mais pagá-la.
A proposta também questiona a ajuda do governo ao setor bancário _em 2011, ela custou custou cerca de 1800 euros (R$ 4.770) a cada espanhol.
Para completar a semana, cerca de 50 pessoas de famílias com ordem de despejo decidiram acampar em frente à sede do Bankia, que hipotecou suas casas, aqui em Madri, para protestar contra a medida e tentar negociação. Até a noite de sexta-feira, seguiam acampados.
Já existiram casos em que o tribunal considerou que a entrega da casa, por si, constituía a liquidação da dívida ao banco. Na verdade, outros países (com regras semelhantes) já estão a legislar sobre a matéria, mesmo que definindo condições – como o valor do imóvel, a situação laboral, rendimentos mensais do agregado.
Há dois anos atrás, antes da crise em Espanha se ter agravado desta maneira, cheguei a escutar que a entrega da habitação ao banco era uma escapatória fácil e que quem contraiu o empréstimo deveria ser castigado pela irresponsabilidade de ter contraído um crédito que nunca poderia pagar!
Eu concordo que o crédito deva ser algo em que sem embarca com responsabilidade, mas defendo que essa responsabilidade seja repartida.
O que aconteceu nos anos 2000 foi um incentivo brutal ao consumo (e ao crédito) porque o dinheiro era barato. Na altura, de facto, as famílias tinham condições para a contracção dos empréstimos – as instituições financeiras assim o definiam, e também os bancos centrais.
Os bancos enviam regularmente cartões de crédito para casa, já com os nossos nomes e com vantagens maravilhosas – sem que fossem solicitados. Em anexo vinha um contrato com letras muito pequenas que só precisava de uma assinatura. E assim se dispunha de mais 750, 1500, 5000 euros…Obviamente que não eram apontadas pistolas, que existia o livre-arbítrio. Mas um contrato celebra-se entre duas partes e ambas terão de ser responsabilizadas. Insistentemente eram impingidos estes produtos financeiros. Ora se o banco se dava ao trabalho de emitir um cartão com o nome do cliente, sem que este o tenha solicitado era porque confiava na capacidade do mesmo de saldar as dívidas.
Mas veio a crise do sub-prime e o sistema financeiro…booom.
Obviamente que é revoltante ver o Estado a resgatar entidades financeiras e por outro lado assaltar fiscalmente e socialmente os cidadãos.
A Luísa também terá escutado os escândalos que foram as indemnizações dos altos cargos das caixas resgatadas (de Valência à Galiza).
Não me parece que os cidadãos dos países em apuros se refugiem num vitimismo sem retorno. Na verdade, todos os movimentos sociais de contestação são um sinal de vitalidade. Pior seria uma resignação muda.
Aplaudo os que conseguem dar uma volta de 180º à sua vida profissional – que depois de despedidos se conseguem reinventar – e respeito os que corajosamente emigram. Pessoalmente recuso-me a aceitar que a ‘culpa’ é exclusivamente nossa, de quem paga impostos.
Agora que passaram as eleições Bascas e Galegas talvez o estado central aceite o resgate. Entretanto a Alemanha lá aprova mais uma ajuda, a crise amplia-se finalmente (e à séria) para Itália, começa a consumir a França, salpica a Alemanha, cai a máscara ao Reino Unido, os Estados Unidos (passada a euforia das actuais eleições) terão dificuldades acrescidas para a retoma. Com o hemisfério norte em recessão não haverá estatística da OCDE, PISA ou UN que justifiquem o quer que seja.
E numa economia global, o que acontece ao resto do Mundo?
Este ‘vaticínio’ não é bonito, por isso vou ingenuamente continuar a trabalhar, a viver e a alimentar a esperança de que sairemos disto – e com as contas em dia!
Bom resto de domingo.
M.
Obrigada pelo ótimo relato Manoel!
Ouvi falar sobre as indenizações na Galícia e em Valência sim. Aliás, nesta segunda-feira houve outra manifestação na Galícia contra ordens de despejo que executaram nesta manhã. É bem triste ver as pessoas sendo retiradas da sua casa, com filhos, idosos, sendo levados em ambulância por ataque de ansiedade…acho uma das faces mais crueis desta crise.
um abraço,
Luisa
Olá Luísa.
Essa sim é a face cruel da crise – o verdadeiro murro no estômago.
Os Estados são em teoria laicos (bem…no caso do Estado Espanhol faz um bocado de impressão que até na tomada de posse dos ministros esteja um crucifixo…) mas usam a culpa ‘católica’ como arma de controlo social. Se partilharem a culpa, se fizerem sentir o cidadão algum remorso, talvez consigam dividir esta conta.
Eu acho que estas dívidas são para pagar, mas nunca me sentirei um pecador.
Nada tenho contra o capital, mas tenho problemas contra os sistemas financeiros selvagens e sem controlo.
A culpa também se poderá estender à comunicação social já que muito pouco tem ajudado o cidadão ‘de la calle’ – okay, precisamos de estar informados sobre a realidade que nos rodeia, mas existem inúmeros casos positivos de sucesso porque o mundo continua a girar. Infelizmente não vendem tanto como a desgraça!
🙂
Espanha Estado laico? Qual embasamento legal? Sabe a diferença entre laico e aconfessional?
Surpreenda-nos!!
Por falar na famosa culpa aplicada no cristianismo (nao apenas no catolicismo), o que voce entende dos que dizem que “a culpa” da crise e dos bancos, politicos? Somente os Estados usam a culpa como arma de controlE? Sempre e mais facil culpar os outros.
(suspiro)… Mas eu explico-lhe: usei a palavra ‘Estados’ – com s, logo plural…porque referia-me ao Estados dos países em crise. Portugal e Irlanda, por exemplo, são oficialmente laicos – Espanha é aconfessional e daí o parêntesis e a minha ‘surpresa’ por ainda nos dias de hoje ver o crucifixo em actos oficiais. Dentro parêntesis referia-me ao caso específico espanhol. Ora leia lá outra vez e repare que escrevi: (…) no caso do Estado Espanhol (…) blah, blah, blah…
Quanto à culpa – os protestantes são cristãos e no entanto não concebem a existência do purgatório nem a distinção e catalogação obsessiva dos diferentes tipos de pecados. O sentimento de culpa é diferente…mas também nunca disse que a culpa era exclusiva do catolicismo.
Se são os Estados que governam, serão os Estados que controlam. Obrigado pela dica ortográfica mas a palavra controle com E é utilizada em português do Brasil, no entanto em português Europeu optamos por controlo com O, menos afrancesado – mas mesmo assim as duas grafias são válidas em ambos os lados do Atlântico.
As culpas (ou responsabilidades) repartem-se e discutem-se. Nem tudo de um lado, nem tudo do outro – e é isso que as minhas opiniões expressam neste blogue. Não baixar a cabeça.
Sim, já sei, sou português…logo… GET OVER IT! – Cumprimentos, M.