Madri, São Paulo, Rio, Istambul, Londres, Tunísia,…
Uma multidão de jovens sai às ruas para protestar por seus direitos. Uma minoria parte para ações violentas. O ato termina em confronto com a polícia, bombas de gás lacrimogêneo, balas de borracha, barricadas, fogo. Jornalistas são presos e feridos. Uma opinião pública local condena. A internacional apoia.
Este enredo, que São Paulo e Rio vivem nesta semana por conta das manifestações contra o aumento das tarifas de transporte público, é exatamente o mesmo –salvo algumas nuances e reivindicações– dos que as ruas da Espanha experimentam há cerca de três anos.
É mais ou menos este o tempo que os espanhóis começaram a ir em massa às ruas em resposta à política de austeridade do governo do país. Desde então, aqui em Madri há ao menos uma manifestação a cada semana. Por isso, o meu olhar já viciado a essas cenas custaram a prestar atenção às imagens de protestos que a televisão espanhola emitia na noite de terça-feira.
A surpresa foi perceber que elas aconteciam na avenida Paulista e no centro do Rio, solo brasileiro, pouco dado a manifestações. Fora isso, tudo é muito similar ao que ocorre aqui na Espanha, do desenlace –uma avalanche de opiniões contrárias e favoráveis na mídia e nas redes sociais– às causas.
E digo que as causas são similares porque ambas começaram com reivindicações mais específicas para terminar –o que parece estar acontecendo no Brasil– com uma revolta contra uma situação mais macro no país –no caso da Espanha, os duros cortes de gastos sociais; no Brasil, o aumento do custo de vida que não acompanha uma melhora nos serviços.
Porque protestar contra R$ 0,20 a mais no preço do ônibus pode parecer pouco, mas por aqui, e até nas manifestações que eclodiram na Primavera Árabe, não foi por muito mais que as pessoas saíram às ruas.
Em Madri, o que levou à formação do chamado movimento dos indignados, que tomou as praças do país e exportou a ideia ao mundo, foi o fato de que policiais impediram umas dez pessoas de passar a noite na Porta do Sol uma semana antes de eleições internas no país.
Em 2010, o jovem que ateou fogo ao próprio corpo na Tunísia, dando início a protestos que eclodiram na Primavera Árabe, não era um revolucionário que exigia a queda de uma série de regimes ditatoriais, mas um feirante que protestava contra a repressão da polícia local a que vendesse seus produtos.
Todos desencadearam grandes manifestações com duros confrontos com suas respectivas forças policiais. Aqui na Espanha, invariavelmente, os protestos terminam assim, seguidos de barricadas e vidraças quebradas em alguns casos.
Não é raro também que jornalistas cobrindo o ato sejam agredidos ou presos, como aconteceu na avenida Paulista. Em 2010, logo após um dos primeiros grandes protestos em Madri, a imprensa divulgou o relato de uma repórter que, confundida com um manifestante, foi detida e passou a noite na prisão depois de, segundo ela, ser agredida.
Em Barcelona, está na Justiça o caso de uma jornalista que perdeu um dos olhos após ser atingida por uma bala de borracha disparada, segundo ela, por homens da polícia da Catalunha. Ontem, situação bem parecida aconteceu com uma repórter da Folha e um fotógrafo que, como sua colega espanhola, corre o risco de perder a visão.
Em Madri, a recorrência dos protestos levou a imprensa a se organizar neles. Depois desses episódios, começamos a usar coletes com identificação, para que a polícia tivesse claro quem ali é da imprensa. Durante os primeiros protestos, em plena Porta do Sol, eu presenciei, bem na minha frente, um policial agredindo com cacetete um colega, que, como eu e todos ali, não estava identificado.
E há também na Espanha visões bem opostas e acusações mútuas, como tenho visto nas redes sociais e artigos de opiniões do Brasil. Por aqui, empresários, comerciantes e políticos acham que os protestos daqui já passaram dos limites democráticos e caminham para ser cada vez mais violentos e coercitivos –em alguns casos, manifestantes perseguem políticos até a porta de sua casa. Já os movimentos sociais acusam o Estado e a polícia de coibir com violência manifestações democráticas, uma posição que já ganhou até apoio da União Europeia. A Anistia Internacional também condenou o “uso excessivo da força” nos protestos da Espanha.
A imprensa daqui tem se mostrado simpática aos movimentos nas ruas do Rio e de São Paulo. O “ABC”, de viés conservador e normalmente contrário aos protestos espanhóis, já noticiou hoje que “a polícia reprimiu violentamente os manifestantes”, em reportagem intitulada “A violência policial contra os manifestantes em São Paulo será investigada”. Nela destaca também que sua correspondente no Brasil “foi intimidada sucessivas vezes por policiais com balas de borracha”.
O “El Mundo” conta nesta notícia que os protestos são “a gota d´água” para o encarecimento e a piora de qualidade de vida no país, nas palavras de um entrevistado.
Já o “El País”, que criou uma seção em seu site apenas para “os protestos no Brasil” e deste terça-feira dá destaque ao tema em seu portal, hoje afirma que “a polícia perde o controle em São Paulo”. Na terça-feira, o jornal reportou, neste artigo de seu correspondente no Rio de Janeiro em versão impressa e online, como o “Brasil se levanta em protesto contra o aumento dos preços do transporte”, lembrando também manifestações em Natal e greve do setor em Florianópolis. E frisou a rejeição a elas por parte da classe média brasileira que, “pouco acostumada às manifestações de protesto nas ruas, está aplaudindo as autoridades”.
Mas essa rejeição parece estar diminuindo em questão de dias. Hoje, uma pesquisa do Datafolha revela que a maioria dos entrevistados na quinta-feira, 815 moradores de São Paulo com 16 anos ou mais, apoia os protestos, porcentagem que cresce entre os ouvidos com rendas mais altas, ainda que metade afirme não usar transporte público. Mesmo assim, quase a metade também acha que a ação da polícia foi “violenta na medida certa”.
Por aqui, esse movimento foi similar. Os protestos foram ganhando apoio aos poucos, embora sempre com fortes reservas, principalmente quando terminam de forma violenta.
Uma possível explicação para isso é a de que o foco dos protestos na Espanha –a política de austeridade– também afeta, ainda que em menor escala, a classe média alta das grandes cidades. De alguma maneira, os manifestantes falam a língua de quase todos, assim como no Brasil há muita gente contrária aos protestos que também se diz insatisfeita com o aumento do custo de vida. Outra vez, na pesquisa do Datafolha de hoje, mais da metade dos entrevistados diz não usar transporte público, embora uma maioria apoia as manifestações.
Quando eclodiu nas praças e ruas de toda a Espanha, o movimento dos indignados foi criticado por propostas demasiado abstratas, como outra forma de governo global. Depois, avançou para lutas mais concretas e ligadas ao dia-a-dia do país, e daí se solidificou e, dois anos depois de seu surgimento, sobrevive ativamente, como contei neste post mês passado.
Embora por aqui o foco dos protestos sejam cortes de gastos sociais, o aumento no preço de passagens também é tema recorrente de manifestações em Madri. O transporte público da capital, que até 2010 tinha uma das melhores relações custo-benefício de toda a Europa, está aos poucos perdendo qualidade e ganhando cifras mais caras.
Como já contei aqui, quando cheguei a Madri, em 2009, o bilhete simples para a zona A, a mais central, custava € 1, e o de dez viagens saía por € 7,40 euros. Por € 46, comprava-se o bilhete mensal, que dava acesso ilimitado ao metrô e ônibus da cidade durante o mês corrente. Hoje, eles custam, respectivamente, € 1,50, € 12 e € 51,30.
Ano passado, o movimento “Paremos o Metrô”, contra o aumento das tarifas, provocou a paralisação dos trens subterrâneos de Madri por uma hora, em plena hora do rush, em uma ação coordenada na qual várias pessoas apertaram, ao mesmo tempo, o alarme de emergência dos carros, provocando uma pane.
Como em São Paulo, esse tipo de protesto recebeu muitas críticas. Mas também, como no Brasil, os espanhóis, que até 2010 viviam um certo estado de paz social, e internamente se criticavam por trocar as manifestações pela praia e a boa comida mediterrânea, hoje defendem cada vez mais seus direitos nas ruas.